Naquela manhã, um tatu morto foi encontrado na praia. Junto com as folhas amarelas do mangue, uma caravela roxa fosforescente e uma embalagem azul enfeitada de búzios, a carapaça dura e a carne ainda morna jaziam encobertos por infinitos grãos de areia.
Maicon foi o primeiro a achar. O sol estava quase nascendo e a maré estava secando. A lancha, presa na amarração, fazia uma diagonal com o horizonte distante. O vento soprava noroeste. Tudo certo: o nó estava bem amarrado, a âncora firme e o sensor piscando - água agora só fora do casco.
Fazia oito anos que acordar de madrugada, em dias de tempestade ou de lua, era parte de sua rotina. Fazia cinco anos que Luana tinha partido para o continente e sumido no mundo.
Ele se abaixou e ficou examinando o casco, pequeno e delicado, que parecia ser de uma fêmea. Talvez ela também tivesse escolhido se aventurar por aí e acabou na praia errada.
Não é que ele sentisse falta dos tempos em que qualquer caça rançosa do meio do mato matava a fome da família inteira. O dinheiro que ganhava hoje em dia com os passeios de lancha era suficiente para ele e sua única filha. Clarinha ia se casar no próximo mês e todo o sacrifício que passaram quando ela era pequena tinha valido a pena. Até Bolinha, o cachorro que venderam por cinquenta reais para comprar Mucilon, ficaria feliz em ver a menina virando uma mulher feita. O tempero que a filha fazia lembrava muito o de sua mãe, mas Clarinha não chamava o pai para perto do fogo para experimentar se estava bom de sal, como Luana sempre fazia. Talvez começasse a fazer isso para seu marido.
Maicon olhou para o céu e ainda não havia sinal dos urubus. Ele deixou o tatu na areia e voltou para casa a passos frouxos.
*****
A água que caia da bica escorria pelo quintal. A tempestade tinha sido forte e as folhas secas do telhado se acomularam perto do pé de jambo, que começava a colorir de rosa o chão de terra preta e úmida. O escorregador mofado de Clarinha parecia ainda menor perto do tronco da árvore que já tinha sobrevivido a tantos verões.
Maicon resolveu gadanhar o terreno enquanto a filha não acordava. Provavelmente ficaria na cama até meio-dia. A menina era dorminhoca desde pequena e, na noite anterior, tinha saído com as amigas para ir no forró da vila. Deve ter bebido.
— Ei, meu pai. A gente vai mesmo pegar polvo? O sol já tá bem forte.
— Ah, deixa disso, Clarinha. Faz companhia pro seu pai que tá com saudade de comer uma moqueca de polvo com banana.
Clarinha apareceu na janela de pijamas e com os olhos inchados. Estava ficando cada vez mais parecida com a mãe, na idade que eles se conheceram e se apaixonaram na festa de ano da prefeitura. Maicon veio visitar um primo e nunca mais voltou para o interior. Dormia no chão da kitnet e foi fazendo bicos de garçom no restaurante da família da futura esposa até eles se casarem e ele se mudar para o terreno da falecida sogra, que tinha virado pousada. Um muro alto e cinza separava a casa e o jambeiro das piscinas e dos quartos de luxo do novo proprietário, que até hoje não tinha aprendido a falar português.
Maicon encostou o gadanho no pau de eucalipto embaixo da bica que tinha parado de pingar. Era ali que antes deixava a bacia encher durante a noite. Comprar água mineral saia muito caro e o casal não queria que a fórmula da filha fosse feita com a água barrenta do poço.
Ele pegou os bicheiros enferrujados ao lado do tanque e deitou na rede para esperar Clarinha se arrumar.
Clarinha andava de Havaianas se equilibrando entre formações duras e moles de corais, silenciosa e apressada, tentando acompanhar os passos do pai, que pisava firme e decidido, protegido com suas galochas.
— Tá vendo alguma casinha, filha?
— Nããão, meu pai. Até hoje não sei como que vocês acham esses polvos aqui.
— Oxi, eu já te expliquei tantas vezes, pena que você nunca deu valor pras sabedorias do seu velho pai.
— Ô painho, que drama todo é esse? Não to aqui com você, não? Me conte logo, bora.
— Vou te dizer que nem um turista me disse bonito uma vez, quando eu trouxe ele pra cá. Aí quem sabe cê entende: “Você tem que usar o sentidos ao invés da visão.”
Maicon ficou sério e fechou os olhos. Fez uma pose de braços abertos empunhando os bicheiros. Respirou fundo. Depois olhou para um lado e para o outro, concentrado. Observando os corais, girou devagar em volta de si. Clarinha assistiu a performance sorrindo.
Ele deu um passo pequeno e se abaixou.
— Aqui, vem logo! Olha só, grandão esse buraco.
— Mas meu pai, é igual a todos os outros buracos.
— Aqui, ó, não é tipo um cinzeiro de granfino?
Clarinha só conseguia enxergar um monte de conchinhas em volta do buraco. Chegando mais perto, percebeu que elas estavam todas arrumadinhas, colocadas lado a lado, em círculo, variando entre menores e maiores, algumas pontudas, outras quebradiças.
Maicon enfiou o bicheiro em um só golpe e ouviu o ranger do encontro do metal com as pedras.
— Poxa, tá vazio. Deve ter ido passear.
Clarinha saiu andando na frente, curiosa. Queria achar uma casinha decorada. Logo chegaria a sua vez, e a ideia de colocar objetos enfeitando as paredes deixou ela animada. Onde estaria o retrato dela e de sua mãe na praia?
— Meu pai, esse não era o poço que a gente vinha tomar banho com minha mãe?
Clarinha parou em frente a um poço de água cristalina. Enxergou as pedras do fundo e alguns peixinhos azuis, que ela tanto gostava de brincar. Da última vez, ela estava em cima daqueles mesmos corais quando sua mãe deu um empurrão e ela caiu na água.
— Tá com medo de que? Bicha lerda, é só nadar.
A mãe ria.
— Mas e meu cabelo, mainha? Molhou tudo! E agora?
Clarinha tinha feito uma progressiva escondida de sua mãe quando foi passar uns dias na casa da avó. Como castigo, passou o verão inteiro sem poder entrar no mar, com medo de ficar careca. Era tudo mentira, mas ela não sabia. Tinha só sete anos.
— Bora, Clarinha, a maré vai começar a encher.
Clarinha sentou nos corais e colocou os pés na água quentinha. Os peixinhos se esconderam.
Maicon voltou e a viu ali, imóvel, com os olhos fixos no poço. Ele hesitou em interromper. Era saudade.
Ele colocou o bicheiro de lado e sentou perto dela.
— Sabe, minha filha, quando sua mãe engravidou, a gente vinha aqui sonhar alto. Falar besteira. Prometer mundos e fundos pra você.
Clarinha continuou encarando o poço e deixou os peixes morderem seus dedos. Faziam coceças.
— Será que mainha tá bem?
— Onde quer que ela esteja, deve tá sentindo falta daqui.
Maicon tirou as galochas e molhou os pés.
— Painho?
— Fale, Clarinha.
— Por que eu não posso ficar aqui? Prometo que eu deixo a casa limpa, a cama arrumada… Cê não vai encontrar um grão de areia!
— Deixa disso, menina. Seu casamento com Jorge é uma benção que aconteceu na nossa família. Seu futuro em Salvador tá garantido. Ele é um moço estudado. Vai te dar tudo que você quiser.
— Mas painho, você acha que eu vou ser feliz lá?
— O pai tá feliz de ver a filha bem cuidada. Vai ter uma vida que eu não pude te dar.
Ela olhou para o pai, que estava com os olhos marejados, e sorriu. Deu dois tapinhas no ombro dele e se levantou depressa.
— Bora, painho. A maré vai subir, e os polvos tão escondidos por aí, esperando pra virar moqueca.
Ao longe, a maré começava a encher, cobrindo os caminhos que haviam percorrido.
BICHEIRO - O bicheiro para polvo é uma ferramenta de pesca usada para capturar polvos e lagostas, ou para auxiliar na desobstrução de peixes presos.
Comovente, simples e também profundo. Tô emocionada!
"Era saudade". Me emocionei também.