Pertencimento. Não-lugar. Dentro e fora. Alteridade. Linguagem. Comunicação. Perigos. Liberdade. Movimentos.
Se eu fosse procurar o que está escondido no meu porão, acharia essas palavras. Quem está por aqui já deve ter percebido que são elas que acabam se repetindo.
“Às vezes, lecionando, eu achava muito bonito quando as pessoas, depois de escrever alguns textos, elas iam identificando algum tema que unia as obras delas, o que elas estavam investigando.”
Ouvi Daniel Lameira e Carol Bensimon, escritora gaúcha e dona de uma das newsletters que eu mais gosto, conversarem sobre seus grandes temas no podcast Clareira, que aborda processos criativos de artistas de várias áreas.
Mas hoje não vim refletir sobre a ilha ou sobre escrita.
Vou falar sobre a história de um filme de animação.
Começo com a memória de mostrar o curta do meu TCC ao meu pai e de uma das poucas frases que recebi de feedback: “Você não acha que tá muito subjetivo, filha?”
Sim, pai, sempre. Não consegui te responder na época. Fiquei até um pouco brava e me fechei, como de costume. Não sabia definir direito o que era subjetividade e o quanto ela era presente nas minhas profundezas e o quanto eu tive que cavar para abrir espaço e ela poder sair.
O tempo passou, com viagens cada vez mais internas, e eu só fui entender que tinha um novo filme para fazer em 2019, ainda encavernada em Berlim. No ápice do desencaixe, da adaptação, e sem raízes.
Nesse mesmo ano, voltei duas vezes para o Brasil para acompanhar as cirurgias do meu pai, que estava enfrentando um tumor no cérebro mega agressivo. Em agosto, conheci minha futura ilha. Era inverno, chuvas, baixa temporada, e eu e mais duas amigas fomos muito bem recepcionadas e acolhidas.
Uma dessas amigas era a Belisa.
Em janeiro de 2020, juntei tudo o que conseguia carregar sozinha e voltei para o Brasil. Meu pai faleceu em fevereiro. Em março, pandemia.
Estava sem chão. Sem casa. Sem meu pai.
Foram meses mais do que estranhos em São Paulo, uma cidade que nunca foi minha. Já tinha me juntado com amigos produtores para tentar fazer o filme acontecer e aí veio a notícia que o projeto tinha passado em uma residência artística na Dinamarca - mas estava tudo pausado.
Comprei passagem para outubro e ia voltar. Segunda onda.
Em um ato de desespero, decidi passar um tempo na Bahia para esperar a chance de recomeçar na Europa (sim, privilégios). Lembrei da vila e do carinho e segurança que havia sentido. Aluguei uma casinha por 15 dias e já se foram quatro anos.
Quando eu conto essa história, gosto de dizer que o que encontrei por aqui foi afeto, que era o que eu mais precisava e não sabia. De repente, eu já estava dentro da casa das pessoas e elas na minha, como se fosse assim que tinha que ser.
Meu novo filme conta a história de uma semente de caju que é levada pelo vento para o outro lado do oceano e acaba tendo que se adaptar a um solo seco e um clima hostil, rodeada por árvores brancas e compridas.
Ele se chama “Casca”: minha defesa e proteção. Dureza.
Em 2021, a Belisa veio me visitar e descobrimos como conversar sem dizer absolutamente nada, atravessando um rio psicodélico e segurando uma a mão da outra. Ela estava cumprindo a promessa que fez a minha mãe no dia do velório: “Cuida da Bianca por mim.” Cuidamos.
Em 2022, o projeto passou no edital da SPcine e eu chamei a Belisa para fazer as ilustrações do filme. Um ano depois, iríamos ficar dez meses brigadas.
“Eu e a Bianca descobrimos processos opostos, além de eu estar sob o comando de uma narrativa que havia brotado dela e minimamente, eu deveria corresponder parte da sua lógica e do seu imaginário. Ela pensava e racionalizava para apontar a direção, e eu operava no sentido inverso, eu fazia e fazia, assim a coisa se apontava para mim. Sim, é confuso, porque estávamos fazendo um filme subjetivo e abstrato, e você já viu duas abstrações se espelharem? A raiz disso é intangível.”
Fui para a Dinamarca e vivi uma experiência artística incrível, mas me sentir (de novo) tão incompatível com aquele lugar, me fez sentir muita saudade do calor da Bahia. Era Josyara que me acalmava.
“Quando você for ver o mar
Seus olhos mergulhar na casa de Iemanjá
Bahia
E todos os Santos vão abençoarE verá seu interior festejar
A lembrança de ser livre
Na selva, no barro, no mangue“
Agora o filme está finalmente pronto. Done. Vertig! Finito. É isso. Ufa!
E semana que vem estou indo visitar a Belisa no Rio. Ela está grávida, perto do mar, e a gente aprendeu que o que se constrói tão profundamente, fica muito difícil de se romper. Mas foi quase.
Decidimos fazer um making of do processo para celebrar o fim da nossa jornada com o “Casca”. E também começar a compartilhar o que mexeu tanto com a gente nos últimos anos.
Uma das coisas mais gostosas que eu vivi aqui na ilha com o filme foi seu teste de cabine (além dos muitos cajus que colhi e comi para a pesquisa…). Juntei meus amigos e fizemos uma sala de cinema improvisada. Estava ansiosa para trazer para eles o que eu estava produzindo enfurnada em casa por tanto tempo. Não fazia ideia do que eles iam achar, e tinha receio de ser tudo muito abstrato (o medo constante de não ser compreendida).
Entre muitas risadas e algumas cervejas, também ficou o registro da primeira crítica do filme, que divido aqui com vocês:
Não acho que a conclusão desse longo ciclo leve ao abandono e à troca das minhas palavras favoritas. Sinto que elas vão estar sempre aqui dentro. Mas está aumentando a vontade de me reinventar e quem sabe ir até mais fundo no que elas significam ou para onde podem me conduzir.
A Bahia quebrou muitas cascas e me deixou até que bem molinha (risos). Cresci. E quero acreditar que aquilo que toma corpo e se expande, se alarga, não tem mais como apequenar-se, independente de onde.
Agora estamos praticamente no fim de 2024 e eu sou proprietária de um pedaço de terra com cinco pés de cajueiro. As cinzas do meu pai estão no mar da ilha. O seu desejo de escrever, um texto sobre a lua e as fotos de um pôr do sol roxo na cidade, vou carregar comigo.
Minhas raízes já se sentem fortes o suficiente para me deixarem ir longe mais uma vez.
Quem quiser assistir o filme completo, manda uma mensagem que eu mando o link. Agora é torcer para que os festivais também gostem e a minha história do cajueiro consiga conquistar outros mundos.
A) Vou pra dentro:
O outro sentir de uma mesma história:
B) Vou pra pra fora:
Sem palavras para o que é esse álbum absurdamente lindo! E que não podia ter outro nome…
C) Fico com as palavras:
ANIMAÇÃO - do Latim animus, alma, coragem, desejo, mente, relacionado a ANIMA, ser vivo, espírito, coragem, disposição, derivado do Indo-Europeu ANE-, assoprar, respirar
DESPEDIR - do Latim expetere, despachar, rescindir compromisso, mandar embora, de EX-, fora, mais PETERE, pedir, dirigir-se a.