— Certeza que foi culpa de eu ter deixado a porra da porteira bater!
— Diacho, homem! Pior que isso é só não dar comida pra Exu! Deus é mais! Mas cê acha que tinha mesmo alguma coisa atrás de você?
— Cê sabe que eu não acredito nessas coisas!
São seis horas da manhã. Com uma cerveja na mão e um baseado na outra, Dino olha para Manuel e para o mar, dá dois passos fundos na areia fofa, suspira e dá mais um trago.
— Mas e aí, Dino, cê não vai me contar como foi a conversa? Terminou com ela?
— Tô aqui te contando que quase não saio vivo, e cê tá preocupado com fofoca? Que amigo, porra!
— E essa história com Cira também não ia te matar? Bora, desembola logo que que rolou.
Na noite anterior, Dino saiu de casa às nove da noite. O encontro seria só mais tarde, mas ele precisava de uma boa desculpa para dar a esposa.
— To indo lá encontrar painho. Parece que a bomba d’água não tá funcionando. Ele tá apertando minha mente o dia inteiro. Mainha tá retada que ainda não tomou banho.
— Mas essa hora? Não pode ser amanhã de manhã?
— Cê não conhece meu pai? Eu é que não aguento mais esses áudios dos dois me aporrinhando.
— E você vai voltar como de lá? Não vai ter mais barco saindo… Seus pais tem que entender que sua família é aqui agora. Será que nem com um neto eles entendem?
Edison Oliveira da Silva Junior estava no colo de Carol, uma carioca branquela e religiosa que tinha ido passar férias na ilha e acabou engravidando de Dino, um nativo de trinta anos e dono da barraca na beira da praia. Os dois moravam juntos e o filho tinha um ano.
— Qualquer coisa eu durmo na casa deles. Não precisa me esperar, não.
Cira tinha avisado que ele só deveria aparecer quando a lua estivesse no alto do céu. O caminho até a casa dela, andando por dentro da mata, demorava quarenta minutos e ele não pensou em desobedecer. Dino aceitava receber ordens daquela mulher que parecia saber muito sobre o mundo dos homens e da natureza.
Ele virou a esquina e decidiu esperar no bar da praça.
— Quem é vivo sempre aparece!
— Já te expulsaram de casa, foi?
— Sabia que essa história toda de casório não era pra você, Dino! Bora, toma uma aí com a gente.
Desde que Carol engravidou, Dino fez promessa para parar de beber e começou a frequentar os cultos da igreja. Parou de ir no terreiro, não saia mais à noite e trabalhava cedo na barraca.
— Pelo menos não sou mais um vagabundo que nem vocês.
— Fique aí falando merda. Quem aqui não sabe que quem te sustenta é a carioca? Cê num engana ninguém.
*****
— Preciso de mais uma cerveja.
Dino amassa a latinha com as mãos e joga na areia. Ele entra na barraca feita de garrafas de vidro, tábuas de madeira e com uma cobertura de palha e telhas plásticas. Manuel vai atrás.
— Dino, não vai colocar tudo a perder agora. O susto já passou e cê precisa dormir! Volta pra casa que sua mulher deve tá surtando!
— Oxi, cê não queria saber como foi? Eu nem te contei nada! Deixa que com ela eu me resolvo depois.
*****
Depois da troca de insultos no bar, Dino voltou para o cruzamento que divide a vila, a mata e a estrada até o cais. Seus pais moravam no vilarejo vizinho, na beira do Rio do Inferno. Foi lá que ele passou a sua infância até sair de casa e começar a trabalhar na praia. A barraca foi sendo construída aos poucos, em frente a fazenda de coqueiros abandonada.
Cira apareceu na vila de pescadores quando ele ainda era adolescente. Ela comprou um terreno isolado no alto do morro e começou a plantar. Ninguém nunca soube de onde veio e o que estava fazendo ali. Só Dino.
Eles se conheceram em uma das noites em que a barraca teve muito movimento e ele ficou até tarde para limpar. A mulher, uma coroa de uns quarenta anos, entrou sozinha no mar escuro. Ela nadou, flutuou e dançou nas águas, e Dino se escondeu para assistir. Até aquele dia, ele só tinha visto sua mãe pelada. Depois daquele dia, eles passaram a se encontrar toda semana.
*****
— Ô, meu Deus, me de coragem e me livrai das tentações!
Sentado atrás do poste, Dino olhou para o céu. A lua começava a iluminar entre as folhas dos coqueiros. Ele calculou que se caminhasse bem devagar, chegaria na casa de Cira no horário marcado.
Estava tudo mais silencioso que o normal. O caminho que ele abriu na mata densa e cheia de armadilhas permanecia bem escondido. A fama de bruxa e o perigo das assombrações afastavam qualquer curioso de chegar perto da propriedade de Cira.
Dino passou com cuidado pela porteira que dava acesso ao terreno. Uma casa de barro redonda e iluminada com tochas e candeeiros estava bem no centro. Ao lado, uma enorme plantação.
Dino bateu na porta e entrou sem esperar ela abrir.
— Sempre pontual, meu bem!
Cira se demorou no abraço. Dino tremia e ela o apertou com carinho.
— Aconteceu alguma coisa?
Ele olhou em volta antes de começar a falar.
— Cira, a gente tem que parar com isso.
— Lá vem você com todo esse medo de novo. Já disse que é bobagem. Ninguém sabe o que a gente faz aqui.
— Não é bem assim… As coisas tão mudadas lá na vila, tô te dizendo faz tempo. O turismo aumentou muito nesses últimos anos, eu mesmo nunca trabalhei tanto. E junto com o turismo você sabe o que vem junto!
— Mais dinheiro pra gente!
— Oxi, Cira. Tô falando sério, me ouve.
— Ô, meu menino, fique calmo! Aqui a gente tá protegido. Quem vai se meter com uma macumbeira das brabas! Não é assim que eles me chamam lá embaixo?
— Isso é a galera daqui! Mas tá vindo gente de fora agora, bem perigosa que eu fiquei sabendo.
— Ficou sabendo de quem?
— Não sei quem exatamente. Mas tá todo mundo falando. E essa briga eu não quero, não. Meu filho tá pequeno ainda pra eu morrer jovem.
— Morrer? Você tá exagerando agora.
— Num é exagero não. Tão dizendo que esse povo vem tudo armado e querem tomar o espaço.
— Mas alguém descobriu que você vende lá na barraca? Dino, você disse que toma cuidado. Deu tudo certo até hoje, não dá pra abandonar o barco assim.
— E por que não? Eu já tenho uma boa economia guardada do que a gente fez nesses anos todos. Imagina você! Já pode se aposentar tranquila.
— Tá me chamando de velha agora? Não vou largar minha plantação assim tão fácil. Deixa que eles venham!
— Cira, por favor. Por mim e por você. Já tá bom de eu ter de vir pra cá escondido pra te ajudar a colher e a secar. Daqui a pouco meus pais morrem e eu não vou ter nem mais o que mentir.
— Porra, Dino. Tá matando todo mundo hoje, hein! Cruzes!
— É, sério. Acredita em mim dessa vez. Não sou mais criança…
— Você vai sempre ser meu menino!
— Promete que você vai pensar? Vou ver se descubro mais coisas pra fazer você mudar de ideia.
— Ihh, prometo. Vai embora hoje então que você me deixou de mau humor.
— Cira, cê devia pensar em comprar um cachorro pra pelo menos fazer barulho se entrar alguém.
— Ai que chato! Vai logo que eu vou acender um e ir dormir.
Dino não se despediu e se apressou em sair da casa. Ele deu uma última olhada na plantação de pés de maconha que estavam prontos para serem colhidos. O cheiro, a brisa, o dinheiro. Também não estava feliz em ter que deixar isso para trás. Com a mente perturbada, acabou soltando a porteira e ela bateu três vezes. Ele seguiu o caminho.
Já na primeira descida do morro, Dino ouviu um passo. Olhou ao redor, e nada. Podia ser um animal, uma raposa, um tatu. Acelerou e os barulhos acompanhavam sua pisada. A lua já estava encoberta pelas copas das árvores e ele não conseguia enxergar direito. Conhecia bem o trajeto e passar por ali a noite nunca tinha sido um problema, mas algo estava estranho. Não devia ter saído.
Os ruídos na mata aumentaram e Dino começou a correr. Queria voltar para casa e encontrar seu filho dormindo. Não via a hora de Junior começar a andar e eles poderem brincar juntos na praia. Seu filho, um varãozinho que ele colocou no mundo. E que ia ter do bom e do melhor. Ia melhorar a barraca e fazer mais dinheiro vendendo drinks.
Os sons de pisadas duras se aproximavam. Era um passo de Dino, dois passos atrás.
Dino avistou a entrada para segunda descida. De um lado, mais mata. Do outro, a vila ainda distante. Atrás, Cira e a erva.
— Laroyê Exu! Abra os caminhos!
Ele seguiu em uma velocidade que nunca tinha corrido. Seus braços abertos empurravam galhos que arranhavam seu rosto e seu tronco. Teve que desviar de árvores enormes, pisar em poças d’água, se abaixar e pular buracos. Não sabia onde estava, mas sabia que iria chegar.
*****
— Tá, mas aí você escapou e veio aqui pra praia? Não era melhor ir pra sua casa?
— E se tivesse mesmo alguém me seguindo? Não ia deixar irem atrás da minha família.
O vento sopra forte vindo do mar. Dino senta na mesa de sua barraca e coça a cabeça. O baseado está apagado entre seus dedos.
Manuel coloca a mão no seu ombro.
— Vai ficar tudo bem, cumpadi. Deve ter sido tudo coisa da sua cabeça.
Tuta, filho de Manuel, aparece na praia gritando.
— Painho! Minha mãe falou pra eu vir te buscar! Os caras tão vindo aí. Ela não quis me dizer que que foi, mas Dona Branca já me contou.
— E o que que foi que Dona Branca te falou?
— Invadiram a casa de Cira e mataram ela.