— Bora, bora!
— O que que foi Valtinho?
— O de sempre!
Era a cobra. Ele disse isso enquanto mexia nos latas de tinta ao lado da construção e procurava um pau para matá-la. Eu tinha que estar perto. Deixei o feijão no fogo e desembestei pra fora de casa.
Nunca quis ter esses poderes. Se eu falo ninguém acredita. Nem mesmo mainha acreditava, e morreu retada comigo porque quem queria ter herdado os saberes de vovó era ela. E olha que a peste tentou. Fazia lá seus banhos e suas macumbas e conseguiu prender um branquelo com ela até o fim. O homem cuidou da velha direitinho, mesmo ela chamando ele pelo nome de painho. Primeiro amor a gente nunca esquece, não é o que todo mundo diz? Ele que fez bem em se mandar pra São Paulo, só devia ter me levado junto. Sempre peguei ar com mainha por toda essa ousadia. Me lembro até hoje dela deitada, esperando a morte chegar, falando nada com nada, e gritando que ainda sabia dar um chá de buceta, e que eu tinha que aprender a segurar Valtinho, mesmo grávida. Euzinha, dona Tiana, que só sabia mesmo era segurar cobra.
Fubá, o sobrinho de Valtinho, que é a cara do sem-vergonha do meu sogro, também veio correndo quando ouviu o alvoroço. Valtinho ainda tava no telhado, apontando pra onde o animal se escondia, ali entre as telhas.
— Sabia que tinha ouvido um sapo gritar! Só não sabia de onde tava vindo. Ó paí, a bicha já engoliu ele todo. Tá com um caroço na garganta.
Foi quando a cobra escorregou e caiu bem perto das minhas plantas.
— Mata, Fubá!
Senti um calafrio subindo na minha espinha.
— Vou acertar suas plantas, dona Tiana!
— Mata essa porra, Fubá!
Os menino hoje em dia são tudo frouxo. Na minha época não era assim. Quando conheci Valtinho, teve vez que ele me carregava no cangote pela mata, pra atravessar o rio, pra pescar na maré. E não era porque eu tinha medo de bicho, não. Ele só queria me conquistar.
Fubá bateu com um pau nas minhas mudas de estrelícias. E elas já tavam num tamanho bonzinho pra eu replantar no canteiro atrás de casa. Da minha, não da de Valtinho, que se deixar, vai virar uma muralha cor de laranja. Nunca vi homem pra gostar tanto de tijolo e cimento. Se bem que foi bom que nesses anos todos a gente economizou com mão de obra pra poder subir nossas casas de aluguel aqui no terreno. E também pra dar de presente a casa de Neto, agora que ele vai casar. Pena que resolveu se enroscar com a troncha da Soraya. Mas pelo menos é meu filho quem decide as coisas e, com a casa nova no terreno, ele não vai ficar longe de mim.
— Bora, Tiana! Segura ela aí que já tô descendo.
— Diacho, homem. Esqueceu que não manda mais em mim?! Não sei se vai funcionar com essa blusa, não. Muito curta pra amarrar.
— Cê também deu pra ficar só usando decote e shorts apertado agora. Tá parecendo uma dessas coroas safadas que vem de fora. Guenta aí que eu pego um dos seus vestidos lá dentro.
— E cadê a porra do nosso filho nessas horas? Ele que tinha tá aqui ajudando a pintar a própria casa. E Soraya que devia tá fazendo o feijão.
— Não é hora pra isso, Tiana. Fale aí essa sua língua do diabo que eu já venho.
— Diabo é você, seu encosto de merda! E vê se não mexe em nada lá dentro. Vou pedir pras minhas espadas deixarem cê entrar.
— Seus feitiços nunca pegaram em mim, mulher. Deixe logo disso.
Tentei dar um nozinho na parte de baixo da blusa, mas tava mesmo justa pra fazer a amarração. Se Neto não tivesse me pedido pra cozinhar o feijão pros meninos fazerem o serviço, eu nem teria saído de casa hoje. E o traste do Valtinho ainda vai comer junto. Ele deve é ter saudade do meu tempero. Nunquinha que vai admitir. E fica aí dizendo que meus feitiços não prestam nele, mas eu bem que sei que eu fisguei ele foi pela boca.
— Olha ela lá, dona Tiana. Vai subir de novo!
Lucas resolveu aparecer. Devia tá vindo lá da oficina, cuidando da madeira pras portas. Esse menino de Gracinha tem futuro, é esperto no mundo. Tá de olho em tudo que Valtinho faz. Daqui uns anos pode até começar a pegar obra sozinho. Aí quem sabe ele derruba aquela casa feia de barro e faz uma nova pra mãe. Ela estraga a vizinhança, os turistas também já comentaram. Queria que Neto fosse assim, e não preguiçoso e mulherengo. Acho que ele não tem mais jeito. Valtinho mimou muito nosso menino. Cresceu achando que era playboy, nesse lugar que os turistas ainda acham que a gente é funcionário, com essa cara de pobre que Deus nos deu. Aí foi logo se ajeitar com outra que é pobre, pobre mesmo. Pobre e embolorada, a menina. Sorte dele que eu sou agilizada e eu e Valtinho demos duro nessa vida.
Murmurei umas palavras baixinho, dessas que não pode repetir que senão perde a força. A cobra começou a se arrastar pra subir, lerda no mundo, e com o sapo na goela. Achei estranho que ela não fez pose pra dar o bote, quando Fubá tava por perto. Será que era mesmo uma jaracuçu? Assim de baixo eu não conseguia ver direito as cores dela, meio marrom, meio amarela… Mas ainda bem, que senão o bichinho ia se cagar nas calças. Imagina esse menino se cagando todo no meu jardim e a merda escorrendo pelas pernas? Nunca vi isso desses jovens hoje em dia que nem cueca usam mais. Ficam só por aí, com o pau balançando dentro do shorts. E olha que ele dá pra ver que ele herdou o tamanho da família toda…
— Tá aqui, mulher. Bora que senão a gente vai ter que dormir junto hoje que a bicha tá indo pra dentro da sua casa.
— Bem que cê queria, seu safado! Eu é que não chego mais perto desse seu pau sujo dessas piriguete por aí.
Tirei a blusa ali mesmo, na frente de Valtinho, Fubá, Lucas e Perê, outro bastardo do meu sogro, que tem a mão boa pra terra que nem eu, mas é o pior de todos os homens da família. Ele que levava Valtinho pros bregas quando eu tava grávida de Neto.
— Ô, minha tia, faz isso não.
— Nunca viu uns peitos grandes assim, foi? Olha aqui como ainda tão bem firmes, de tanto eu gadanhar nesse jardim.
— Cê é sem vergonha mesmo, hein Tiana! Ninguém quer ver esse teu corpo de velha assanhada. Esconde logo isso.
— Cês é que são tudo uns pau mole da porra. Só me falta uma pica no meio das pernas, mas culhões sou eu que tenho. Bora lá matar essa cobra.
Puxei o vestido das mãos de Valtinho e vesti por cima da cabeça. Fazia tempo que eu não me arrumava, que eu nem saia de casa. Nem lembrava qual tinha sido a última vez que eu tinha recebido uns belos de uns apertões na bunda. Valtinho foi na frente.
— E não é que a bicha quase não se mexeu?
— Bora, Lucas, pega ali o pau que Fubá rumou pra longe.
— E eu faço o que, meu tio?
— Cê fica aí mesmo, menino. Tá aí, Perê, que filho mais molenga que cê foi criar.
— Olhe que pelo menos o meu é trabalhador e não filhinho de papai que nem o seu.
— Pelo menos o meu não anda todo molambento por aí. Nem parece que é da família.
— Ahhh cês parem! Ou eu que vou dar uma paulada em cada um e mandar todo mundo embora e não vai ter mais casa, mais feijão e muito menos diária paga hoje!
— Desculpa, dona Tiana.
A cobra devia ter andado um palmo. Nem sei como ainda tava agarrada naquela coluna. Meu nozinho e minhas rezas deviam ter funcionado, ou ela só tava mesmo pesada, querendo comer em paz. Quando eu tava com Neto na barriga, o médico do postinho avisou que eu devia ter cuidado. Era uma gravidez de risco, já que meu útero era virado e era praticamente um milagre eu ter engravidado assim, sem tratamento. E Valtinho não parava em casa. A gente não podia transar e eu sabia que ele ia quase toda noite saracotear com Perê.
— Anda logo, Valtinho, chega mais perto que eu vou começar.
— Agora é você que quer mandar?
— Vai fazer isso sozinho então? Essa é das grandes. Se for jaracuçu mesmo, ela vai tá pronta pra te dar o bote.
— Oxe, fique calma mulher. Bora fazer isso junto.
Minhas ipomeias se espalhavam pelas vigas do telhado, todas floridas. A gente já estava no final de agosto, e os dias de inverno foram bons pro meu jardim. As bichinhas agora deviam tá andando por aí pra procurar um lugar seguro pra desovar.
Nem mainha aparecia em casa quando eu fiquei de cama, esperando Neto nascer. Disse que se eu não tava dando conta antes de ter um filho nos braços, imagina depois. Naquela época eu já não tinha muitas amigas. Todas se debandaram quando eu vim pra Tamoê e comecei a fazer dinheiro com Valtinho. E ele aparecia só de manhã, cachaçado e resmungando.
— Lucas, sobe lá no telhado que a gente vai tá pronto aqui embaixo.
— Ei, Valtinho. Acho que a gente nem precisa matar essa daí. Do jeito que ela tá lenta dá até pra carregar ela pra outro canto.
— Tá doida, mulher? Vai que ela encontra outra vítima por aí. Tem que arrancar a cabeça logo.
— Mas ela deve tá procurando um ninho.
— Pior ainda! Coisa venenosa assim ou a gente prende ou a gente mata. E acho que cê não vai querer criar uma dessas em casa. Tá precisando tanto assim de companhia?
Valtinho não era assim antes. Tudo mudou naquela noite, em que eu quase morri. Ele voltou pra casa às quatro da manhã e eu tava no chão do banheiro, toda ensanguentada. Ele correu até a casa de Perê e pegamos a Ambulancha direto pro continente. Depois disso eu só lembro de acordar com meu sogro e Perê no quarto do hospital, Valtinho de pé, segurando Neto no colo. “Mais um homem pra família, Tiana! Meu netinho. Pode ficar tranquila que a gente vai ajudar a criar bem esse moleque. Ele tem muito o que aprender.”
A gente ficou na mesma casa até Neto completar cinco anos. Ele já dormia em outro quarto e eu me enfiava na lavanderia o dia todo e não deixei ele contratar ninguém pra me ajudar. O movimento no verão era grande, mas lavar e limpar as casas de aluguel me distraía da vida que eu tinha me enfiado. A solução dele se mudar veio depois, quando eu descobri que ele tinha voltado a frequentar os bregas e expulsei ele de casa.
— Ela vai cair em cima das plantas!
— Porra, Lucas, larga de ser frouxo você também. Depois eu planto isso aí de novo.
Ele cutucou a cobra com o cabo da vassoura de cima do telhado. Ela caiu e eu subi a barra do vestido e dei o nó apertado. Fechei os olhos e falei o que tinha que falar. Valtinho saiu do meu lado com o facão na mão e eu ouvi o barulho das folhas sendo pisoteadas e a lâmina cortando a cabeça do animal. Não quis assistir.
— Ainda bem que tem um homem nesse terreno, hein Tiana! Queria só ver se você tivesse aqui sozinha.
Não era uma jaracuçu. Era só uma cobra-cipó sem veneno. A coitada tinha perdido a cabeça à toa.
Terminei de fazer o feijão e voltei pro meu quarto. Os homens gargalhavam se empanturrando de cerveja e comida do lado de fora, e o espelho gigante de vovó na beira da cama me chamou pra perto. Toquei meu rosto, meus peitos, meus braços ainda fortes. Abri o armário e tirei do fundo a caixa com os meus diários de criança. Só tinham restado dois, o resto mainha tinha queimado quando eu fiz quinze anos.
Encontrei páginas em branco nas últimas folhas do caderno e uma vozinha dentro de mim me lembrou que as palavras tem muito poder. Tava na hora de contar minha história e guardar meus saberes.