— É claro que antes eu perguntaria se eu posso beijá-la. É que eu sou assim, você sabe vai… Não é que sou tímido, só um pouco cauteloso.
— Que nada, rapaz. Cê só é covarde mesmo. Tem que chegar chegando, é assim que elas gostam. Andar com o peito estufado, o olhar firme e a cabeça levantada. E aí pronto, uma roçadinha por trás e já foi.
— E depois ficar com fama de ser um animal impulsivo assim que nem você? Eu não! Gosto de avaliar bem o terreno antes de dar o primeiro passo.
— Desse jeito você vai ficar só comendo capim até morrer. Nem uma montadinha de uma fêmea você vai experimentar.
— Cê fala isso porque o pessoal paga pra subir em você… Minha conquista é diferente.
— Bicho besta! Sabe nem aproveitar o pau que Deus te deu. Olhe, tô indo nessa viu. Daqui a pouco o sol fica quente demais e eu só vim mesmo foi tomar uma fresca. Não sou jegue que nem você que aguenta um calor brabo desses... Se não fosse isso eu até te ajudava com esse peso todo aí.
Bruno soltou um relincho agudo e seguiu caminho. Liderou o bando a trotes rápidos de volta para a mata atrás dos coqueiros, me deixando ali na praia, sozinho e olhando para o mar. Tentei relaxar as costas, mas meu lado esquerdo pesava mais que o direito, com o balaio ainda pela metade. Talvez Bruno estivesse certo e eu devesse usar mais esse meu grande companheiro. Já cansei de ouvir piadas sobre meu tamanho, mas elas sempre acabam preferindo a virilidade exacerbada dos cavalos. Se pelo menos soubessem que por trás da minha teimosia e do meu pau tem muita sensibilidade…
Estava mesmo ficando quente e pensei que seria perfeito se Mestre Toinho esquecesse um daqueles cocos comigo, na hora de descarregar. Pensei que talvez encontrássemos Marina na volta para casa, fazendo café e de ressaca, já se preparando para trabalhar. Era uma segunda-feira, e com seu primeiro paciente da semana ela nunca falava muito. Ficava só fazendo anotações e soltando pequenos sons em concordância. Às vezes repetindo palavras, ou fazendo perguntas. A voz do outro lado parecia ser de um jovem desses da cidade, sofrendo com a liberdade de uma vida nova depois de sair da casa dos pais no interior. Tão confuso, tadinho… Mas ela e eu já sabíamos que ele ainda estava na fase de descobrir muita coisa só se ouvindo falar. Muito esperta minha vizinha.
Se Toinho esquecesse o coco, eu daria um jeito de rolar ele com o focinho até chegar perto da cerca, e Marina estaria ali na varanda, sentada no deck de madeira, com sua parede branca e seu quadro de concha ao fundo, toda concentrada. Ela ia gostar do presente.
Logo quando a concha gigante chegou, eu achei um pouco estranho, não vou mentir. Ela veio junto com muitas caixas de papelão, embaladas em plástico para não molharem no barco. Há uns anos atrás, eu teria levado até lá em cima os últimos itens da mudança e compartilhado com ela esse momento. Marina ficou tão emocionada quando o trator barulhento de Jorge descarregou na porta dela. Ouvi ela dizendo que já tinha chorado a noite toda depois que disseram que as caixas estavam perdidas, e que não podia acreditar que elas estavam finalmente ali! Era o que faltava para ela se sentir em casa. No dia seguinte, lá estava no quadro pendurado. Eu observei tudo de longe, relembrando os dias em que eu pelo menos servia para levar cargas importantes. Agora só me restam os cocos…
Foram muitos meses até eu cruzar a cerca e ver a concha de perto. Marina fica muito em casa, na frente do computador, e eu não tinha muita oportunidade de entrar no terreno e bisbilhotar. Coisa doida esse negócio de trabalhar dentro de casa! E sem nem se levantar da cadeira. Nunca tinha visto isso, antes desse pessoal de fora se mudar pra cá. Pra mim trabalho sempre foi cansar o corpo, suar, carregar peso e ficar com os músculos cada vez mais fortes. Mais e mais. Resistência e muito esforço no sol quente! Mas aí Marina chegou, toda mirradinha. Eu ainda não entendia nada desse mundo tecnológico. Mestre Toinho até tinha um celular, mas ele só usava pra ficar vendo vídeos de mulher pelada e falar com o patrão pra combinar os dias de colher os cocos. Nem sabia que dava pra ler nesse negócio! Deve ser porque Mestre Toinho já tem os cabelos brancos e essas novidades só funcionam mesmo com os mais novos. Foi Pedrim, seu sobrinho, que arrumou o celular pra ele depois de um verão que as vendas aumentaram e o patrão deu de presente uma caixinha com o aparelho dentro. Disse que assim ele não ia mais ter que vir aqui procurar a gente - ia ser tudo pelo celular, o pagamento também. Toinho não gostou nada da ideia de não receber mais em dinheiro e depois esconder tudo debaixo do colchão. E parece que as coisas realmente pioraram com essa história de PIX, porque eu mesmo só trabalho mais e descanso de menos.
Antes eu achava que Marina era herdeira, típica baroa da cidade grande que chega por esses lados e só quer explorar as terras e o povo. Tem tantos e tantas por aqui! Mestre Toinho mesmo só mantem nosso pedacinho na ilha porque o pai morreu num acidente no mar e ele se sente culpado em vender pros gringos a única lembrança que sobrou da família. Se não fosse isso, tenho certeza que ele tinha vendido e se mudado pra bem longe, e eu ia ficar por aqui abandonado… Mas quem sabe Marina ia ficar com o dó de mim e me convidaria pra morar com ela.
No começo eu achava que Marina falava sozinha. Uma mulher num lugar desses e sem marido ainda por cima, claro que devia ter alguma coisa errada. Ela levantava a tela do computador e passava o dia sempre bem séria, franzindo a testa e tomando muitos goles de café enquanto vozes um pouco metálicas vinham do além e faziam ela mudar de expressão e balançar a cabeça. Alguns até faziam ela rir. Aos poucos fui percebendo que na verdade eram pessoas do outro lado, todas muito complexas e com problemas que eu nunca nem imaginei que existissem. Ou que na verdade não existem, como ela diz, e que a própria cabeça dos seres humanos que criam, neuroses, eu aprendi, e Marina ajuda essas pessoas a descobrirem isso! Não é lindo?! O trabalho de Marina é ouvir os outros, e foi aí que eu entendi a história da concha.
Marina tinha saído para uma festa na praia. Era dia de verão e Mestre Toinho deu um dia de folga pra gente porque sabia que a praia ia tá cheia e o pessoal fica pedindo coco e tirando foto enquanto ele sobe nas árvores e ele não gosta. Trabalhamos duro nas semanas antes do ano novo pra poder abastecer as barracas e os restaurantes beira-mar. Ele ficou feliz depois que o celular apitou com o novo PIX do patrão e eu não via a hora de só ficar de maresia no terreno, embaixo da sombra da mangueira e olhando pro vale enquanto ele assava um churrasco. Lá de cima não dá pra ver o mar, é tudo mata, um festival de verdes e folhas balançando e muitos carcarás e urubus mergulhando pra caçar no final do dia. E eu adoro o canto das cigarras, Marina também. Mas ela tinha saído e eu decidi que era minha chance de ver a casa da vizinha de perto. Toinho dormiu na rede e eu demorei algumas horas até terminar de mastigar o capim todo pra não deixar vestígios e cruzei o portão. Marina ainda confia que aqui é um lugar seguro e nunca tranca nada. Sorte dela que eu tô sempre de olho no entra e sai da nossa estrada. Não é que eu seja fofoqueiro, mas meu lugar de descanso é bem de frente pra janela do quarto dela e é cada coisa que eu já vi… Cada bicho que ela já deixou entrar…
Eu fui caminhando devagar e com passos leves pela grama até a parte de trás da casa, de onde ela trabalha. A vista ali também é bem bonita. Deve ser por isso que quando fecha o computador, ela coloca uma música e fica olhando pro horizonte. A gente bem que podia fazer isso juntos.
Parei de frente pro quadro e fiquei. Queria entender porque que ela gostava tanto daquela imagem a ponto de ser o único plano de fundo pros seus pacientes. Coisa estranha. Uma concha branca de molusco, ligeiramente aberta, sem molusco dentro, e só uma bolinha no meio, nem pérola nem pedra, grudada e escondida. Desisti de tentar entender e entrei na casa, passando pela porta enorme de madeira que deve ter custado uma fortuna! A sala só me interessou pela poltrona bege encostada em uma das paredes com várias estantes de livro em volta. Era ali que ela se aninhava… Em uma cor mais parecida com a minha, e não escura como a de Bruno… Será que ela já tinha lido tudo aquilo? Me perguntei porque esse pessoal da cidade estuda tanto se no fim eles só querem viver tranquilos e soltar os instintos selvagens num lugar que nem o nosso. Deve ser por isso que eles ficam inventando mais problemas e complicam tanto as coisas. Segui para o quarto, o grande mistério que eu vejo de longe. As paredes eram azuis, isso eu sabia, e a cama era enorme! Caberiam dois de mim ali… Às vezes tem mesmo mais de um que aparece ao mesmo tempo, mas eles não são tão grandes que nem eu. Ela só precisaria de um de mim.
Meu lombo ainda estava sentindo a manta toda colorida em cima da cama, quando desviei o olhar pra cima da cabeceira. Reparei que o quadro ali era bem menor, branco também, e tive que me aproximar da mesinha de cabeceira cheia de livros pra conseguir enxergar. Quase derrubei o abajur. E lá estava ela, a concha! Mas não era a mesma concha. Devia ser da mesma artista, era muito parecida, mas aquela ali estava fechada, apertadinha, protegendo o que estava dentro. Só na parte de cima tinha uma pequena abertura, indicando que alguma vez ela já tinha sido aberta. Marina sua safada, eu pensei. Do lado de fora, toda assanhadinha e amostrada, mas dentro, oculta e escondida, só para aqueles que conseguissem ver. Esperando para se abrir… Eu te entendo, Marina. Queria tanto que você me desse bola, olhasse pro lado, e conseguisse me escutar.
Na verdade eu não te entendo, Marina. Uma moça tão fina e estudada gostar de uns brutos que nem esses que tem por aqui. Você podia escolher qualquer um, me escolher, mas fica aí trazendo uns bichos de pau grande pra casa.