Quando escolhi Roma como destino, imaginava que uma cidade tão cheia de história, cultura e charme pelas ruas seria o destino perfeito para um reencontro com a vida urbana. Fantasiei sentar nos cafés e nos bares com meu caderninho, conhecer gente interessante, me encantar com exposições de arte e ser surpreendida pelo flâneur sem compromisso. E tudo isso na língua mais romântica que conheço!
Quando cheguei em Roma, a multidão de turistas no ano do Jubileu e o calor abafado de 35 graus me empurraram para dentro de Airbnbs minúsculos (e caríssimos!) para encontrar algum aconchego. Estava enfrentando a dor de um término, e tudo parecia muito, inclusive falar ou escrever sobre isso.
Decidi que não iria desperdiçar todos os euros investidos nessa maluquice aventura e resolvi fazer longas caminhadas nas primeiras horas da manhã, para tentar sentir algo que me chamasse. Ou que pelo menos fosse diferente de toda aquela angústia e desconforto.
Mas não foram as estátuas da mitologia grega, as massas cheias de molho e queijos deliciosos, e muito menos as igrejas e seus altares sagrados que mexeram comigo.
Em um desses dias, entrei despretenciosa em uma livraria em Trastevere, bairro boêmio e mega turístico, perguntando por indicações de autoras italianas contemporâneas que escrevessem literatura erótica. E foi aí que a jornada, intelectual e prática, realmente começou.
Vorrei gridare: scopami! E a un tratto, senza che io me renda troppo conto, me lo mette dentro. Quanto lo sento bene, con la sua circonferenza larga.
Che bello Blu. Viene con colpi lenti e decidi, e il suo osso pubico strofina contro la mia clitoride.
Mi muovo anche io, mi ci strofino contro di proposito, che meraviglia. Ma forse per la fretta non riesco a venire e nel giro di pochi secondi anche lui è fuori.
- Alice Scornajengui, Atti Puri
Brincando com as minhas habilidades linguísticas, traduziria assim as últimas frases desse trecho:
“Que delícia é Blu. Fode com movimentos lentos e firmes, e o osso púbico dele roça no meu clitóris. Eu também me mexo, me esfrego contra ele de propósito, que incrível. Mas talvez pela pressa, não consigo gozar e em poucos segundos ele também sai.”
Na minha interpretação, não foi à toa que a autora escolheu o viene (fode), o venire (gozar), e o fuori (fora/sai) para a construção da cena. Todas as palavras estão na mesma semântica do movimento, da chegada, do deslocamento, mas que não cabem na tradução em que tentei respeitar as nuances do português brasileiro.
Terminei o livro de contos eróticos em pouquíssimos dias. E para além do contato com histórias super criativas e da minha diversão reservada, ele me fez refletir sobre o verbo vir (“venire”, em italiano e “to come”, no inglês) e como ele é usado nessas duas línguas para expressar o nosso gozar. No português, apesar do chegar lá ser parecido, seu uso não é tão comum, seja na literatura ou na hora do sexo.
"Gozar" carrega um peso histórico que vem do latim gaudere - alegrar-se, desfrutar, mas também um tom quase religioso, de êxtase espiritual. Como se o prazer precisasse ser justificado por uma dimensão transcendente. Ele fica mais próximo da metáfora da explosão, da perda de controle. Um prazer que não é caminho, mas um fim abrupto.
O gozar carrega também uma ambiguidade. Pode ser ironia, deboche: goza-se da cara de alguém. Goza-se a vida. E goza-se sozinha. O gozo na nossa língua me parece mais íntimo, mais solitário, e até mesmo menos partilhável.
Talvez seja essa solidão do gozo que sempre me comoveu - eu já aprendi a gozar, você também, e quem sabe agora não podemos gozar juntos. Já até usei a frase “gozar a vida de maneira parecida” para tentar explicar o que me atrai em certas pessoas, como se fosse possível identificar nelas a mesma pulsão de vida que me movimenta.
Quando morava na Alemanha, adorava ir aos lagos e parques em que muitos alemães praticavam a FFK (Freikörperkultur - que defende a liberdade corporal), e a relação deles com corpos nus me fascinava. Nas baladas e dark rooms, presenciei sexos ao vivo e entrelaçamentos de corpos onde não conseguia enxergar o tesão, e sim algo protocolar, prático, quase conveniente.
Faz tempo que abandonei o alemão como língua, onde o kommen até aparece, mas o uso sexual é visto como importado do inglês ou como piada. O alemão tende a preferir expressões mais técnicas ou eufemísticas, como Höhepunkt erreichen - alcançar o ponto alto.
Não é para onde eu gostaria de voltar.
Depois de ler a Alice, voltei a Trastevere e a livreira me contou que a escritora era também a criadora de uma Zine de contos eróticos e que eu poderia achá-la em uma livraria em Pigneto, bairro mais afastado e artístico, e onde tinha chances de encontrar um aluguel mais barato.
Foi estranho ver uma Roma sem sua arquitetura de tirar o fôlego e tão perto de uma linha de trem. O passeio valeu para que eu questionasse que tipo de ambiente, distância ou conexões eu estava procurando, mas a revista estava esgotada. Sai de lá com mais um livro na bolsa e na missão de achar a tal Zine.
Voltei para Trastevere e em uma portinha escondida, perguntei. Dessa vez o livreiro, talvez dono do lugar, era um homem mais velho, magro, alto e um pouco careca, que me disse que não tinha a revista, mas que teve a chance de conhecer Alice pessoalmente. Enquanto bolava um cigarro e se mexia ansioso atrás do balcão, revelou que em uma noite, os dois bêbados, confessou para ela que não entendia como o sexo aparecia de forma tão alegre nos contos. E que ela era “cheia de vida”, que não sabia lidar. Me disse que tinha gostado das histórias, mas que para ele sexo não era assim, tão leve. Continuei a conversa, um pouco distraída, enquanto inspecionava capas e títulos estranhos nas prateleiras, “mas o sexo não pode ser tudo isso junto?”. Ele já estava de pé, quase acendendo o cigarro dentro da loja: “sim, claro, e é. Mas pra mim sempre foi mais morte do que vida. Por isso não faço tanto.”
Foi quando olhei para ele novamente, procurando se tinha algo a mais ali, ou se era apenas um desabafo.
“A paixão venturosa acarreta uma desordem tão violenta que a felicidade em questão, antes de ser uma felicidade cujo gozo é possível, é tão grande que é comparável ao seu oposto, o sofrimento.”
- Georges Bataille, O Erotismo
Para Georges Bataille, o erotismo é a "aprovação da vida até na morte". Não é só prazer, é transgressão, excesso, perigo. É quando o corpo cruza os limites do permitido e se oferece ao outro como se pudesse deixar de ser ele mesmo. É o momento em que nos abandonamos, perdemos o contorno. Como dizem os franceses, la petite mort.
"Os seres que se reproduzem e os seres reproduzidos são distintos, separados por um abismo, por uma fascinante descontinuidade." Segundo Bataille, é nessa busca desesperada pela continuidade (e não isolamento) que reside tanto o prazer quanto a angústia do erotismo. “O erotismo é a força de um elemento comum que une os sujeitos e dissolve suas formas constituídas".
Nessa fusão, muitas vezes imaginária, o desejo tenta suspender o tempo. E quando a suspensão termina, vem o vazio, às vezes a melancolia.
Ao reparar naquele livreiro, que Bataille ajuda a provar que não estava errado, me lembrei do quanto que a melancolia do outro me atrai. Seja pelo espelho, pela minha relação com a morte, ou pela intensidade que parece representar. Acabo achando que o encontro tem chances de ser mais profundo, mais real. Como se os melancólicos carregassem uma autenticidade que pessoas muito otimistas não tem. Como se meu radar fosse ligado para aqueles que sentem mais, em uma tentativa de não me sentir tão sozinha. Ou talvez porque eu ainda ache que posso salvá-los, vai saber.
Agradeci a atenção e saí da livraria para escrever sobre o que o encontro tinha me provocado. Ele não era tão interessante assim e hoje já não sei se consigo compartilhar um medo do sentir tão grande que se transforma no maior interdito para o viver.
Comecei a entender que a minha melancolia não era só pelo fim do relacionamento, mas pela forma como eu tinha aprendido a desejar. Sempre traduzindo meu prazer para uma língua que não era bem a minha.
Continuo sentindo raiva tristeza inveja de não ter o vir junto tão presente, principalmente nesse momento. Mas acho que agora não quero mais quem apenas goze da vida de forma parecida.
Espero um dia estar com alguém que mantenha o tesão pela vida, com todos os “apesar de”. Alguém que entenda que o gozo, seja ele sexual, existencial ou linguístico, não é apenas chegada, mas também partida. E que ele abre espaço para a perda de si, com um outro.
E que isso é o que mais vale a pena.
A) Vou pra dentro:
Deixo o poema de Leminski “um homem com sua dor”, e na voz da Juçara Marçal. E torço que esse tipo de elegância me atraia cada vez menos.
um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
com se chegando atrasado
andasse mais adiantecarrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa, um milhão de dólares
ou coisa que os valhaópios, édens, analgésicos
não me toquem nesse dor
ela é tudo o que me sobra
sofrer vai ser a minha última obra
B) Vou pra fora:
Mesmo passado um pouco do boom, me parece oportuno indicar a série “Dying for Sex”, que a Renata Correa traduziu como “Morrendo de Tesão”, em sua newsletter. Acompanhar Molly (Michele Willians) e sua busca pelo gozo enquanto enfrenta um câncer terminal é a perfeita junção de pulsão de vida, de morte, e do não desistir.
C) Fico com as palavras:
TESÃO- do latim tensio, tensão ou estiramento.
D) Fico por aqui:
Querido leitor, - Surina e uma carta ao leitor
Esta edição fala inteiramente de sexo - Bia e seus dias sem sexo
Coisas que não se dizem - Editora Âyiné e livro que obedece a uma única ordem: não mentir
O custo da domesticidade - Catharina e o novo livro da Alba de Céspedes