Comprei bacon, carne de sertão e pedi emprestado duas calabresas para a vizinha — o mercadinho está trocando de dono e, nessas últimas semanas, a gente só teve o básico do básico para comprar. Tomates, cebola, pimentão, alho… Primeiro dessalguei a carne, trocando três vezes a água. Piquei o bacon, as calabresas, fritei com seis cabeças de alho, e deixei cozinhar na pressão por vinte minutos. Depois, juntei o feijão, a mistura de temperos batida no liquidificador, folhas de louro, colorau e pimenta. A panela começou a apitar; mais uns 25 minutos e estaria pronto.
É a primeira vez que faço feijão desde que voltei para a ilha. A receita, ou melhor, esse modo específico de preparo, foi uma das nativas que me ensinou, repetindo seu ritual quase diário enquanto eu ficava ao lado, só espiando. Foi dela que recebi os primeiros afetos as primeiras marmitas, logo que cheguei de São Paulo, triste por não conseguir voltar para a Europa durante a pandemia, e achando que ia demorar só alguns meses até retomar a minha antiga vida. Isso aconteceu quatro anos e meio atrás.
Foi também em 2020 que eu comecei a cozinhar mais. Estava presa em um minúsculo apartamento em Pinheiros, bairro em que um dia sonhei morar, vivendo o luto da morte do meu pai e na expectativa de que tudo voltasse ao normal. Enquanto fazia freelas e me distraía ocupava com o trabalho, comecei aulas de canto, de escrita criativa, e depois de alguns meses, entrei na onda de assistir vídeos no Youtube para conhecer receitas novas. Não fiz pão, mas resolvi embarcar na culinária asiática e suas inspirações. Aprendi a fazer lámen caseiro, com seus caldos que envolviam vários processos — o cheiro de shoyu e alho dominava meus 32 metros quadrados. Fiz bowls no estilo poke havaiano, com couve crocante (lavada, bem seca, colocada no forno com azeite), molhos de ostra com gengibre e crispies de aipim, cortados finos no mandolim e fritos até ficarem dourados.
Teve também o katsu sando, o sanduíche japonês com lombo de porco empanado. Marinava a carne no saquê com alho e um pouco de shoyu, empanava com panko, cortava as fatias de pão de forma branco, tirando a casca com muito cuidado. Passava uma camada generosa de molho tonkatsu (tipo um barbecue agridoce) e repolho ralado finíssimo, quase transparente. Apertava o sanduíche, cortava em dois, e o recheio escorria só um pouquinho. Era reconfortante.
Tudo que envolvesse ficar na cozinha por horas no preparo, sentindo cheiros, gostos e prazeres diferentes. Foi parte da minha elaboração do luto, principalmente porque interações reais com outros seres humanos não eram possíveis.
Gosto muito de comer, top 3 prazeres da vida, sem a menor dúvida. Do tipo fechar os olhos e deixar cada papila acender e me permitir ter pequenos orgasmos. E a culinária italiana ainda é uma das minhas favoritas. Não porque meu nome, sobrenomes e cidadania vêm daquele país. Minhas avós até faziam nhoques na mão, ou macarronadas com molho vermelho e frango com creme de leite aos domingos, mas nada que lembrasse o que eu fui provar quando me mudei para a Itália.
Passei quatro meses em Griante, um vilarejo de 400 habitantes na beira do lago de Como, antes de mudar para Berlim, em 2017. Precisava esperar meu passaporte sair para começar a minha vida na tão sonhada Alemanha e, como aqui na ilha, o passatempo virou ir ao mercadinho, conversar com os locais, e escolher ingredientes frescos para preparar em casa, junto com a outra brasileira que dividia o espaço. Dessa vez eu tive companhia, e sempre terminávamos o dia tomando um chá de camomila e aprendendo palavras fofas em italiano, que vinham no saquinho de chá (vocês conhecem a palavra Coccolare?).
Já em 2019, passei a Páscoa com toda a família na viagem que seria de despedida do meu pai. Foram dias em Roma, Nápoles, e alguns na Costa Amalfitana. Como experiente moradora da Europa, busquei todas as dicas e recomendações de Cacio e Pepes, Carbonaras, Supplìs, vinhos e gelatos. Foi uma abundância de sabores, enquanto não conseguíamos encarar o fato de que o pior estava para acontecer, menos de dez meses depois.
Então imaginem o meu susto ao me dar conta de que na minha breve estadia em Roma, dois meses atrás, minhas refeições eram constituídas de apenas quatro ingredientes: mussarela, manjericão, tomate e algum carboidrato. Variações de pizzas, sanduíches, arancinis e massas, mas nenhum prato que fugisse dessa combinação.
“Em que consiste o trabalho realizado pelo luto? Creio que não é forçado descrevê-lo da seguinte maneira: a prova de realidade mostrou que o objeto amado já não existe mais e agora exige que toda a libido seja retirada de suas ligações com esse objeto.”
Sigmund Freud, Luto e Melancolia
No começo do ano, coloquei como meta para 2025 “sair mais de mim, acreditando na possibilidade de encontros, paixões e trocas.” Precisava “me colocar de novo no mundo”, e entre uma cidade grande no Brasil ou na Europa, decidi que queria dar mais uma chance para o velho continente, já que nosso término não tinha sido planejado.
No meio de todas as enrolações programações e compras de passagem, adicionei uma parada no caminho. Praticamente forcei o convite — uma última tentativa para o que eu acreditava ser o amor, e parti. Passei um mês em um novo país, em uma nova língua e, além disso, compartilhando descobertas gastronômicas com quem eu queria estar. Queria ter por perto. 
Dividir.
Minha libido estava 100% investida ali. Em fazer dar certo, em degustar os desafios (e bizarrices) do que poderia ser uma vida a dois. Um futuro incerto e arriscado, mas que, para mim, valia a pena. O que eu estava sentindo, e desejando, cabia ao redor de duas xícaras de café solúvel toda manhã.
Naquele mês, foram pelo menos mais de sessenta refeições fora de casa, com direito a holding hands across the table, sempre um de frente para o outro. Às vezes lado a lado, com as cadeiras viradas para a rua, fantasiando sobre quem eram os estranhos, entre inocentes e safados, ou se apenas admirávamos o corte do cabelo. Molhos do melhor sanduíche de ovo que eu provavelmente vou comer na vida escorrendo pelo meu rosto, infinitos guardanapos sujos, dedos lambidos, fotos que só a gente vai ver, temperos novos e muitas risadas. E sempre o seu olhar atento, querendo saber se eu tinha gostado. Eu tinha, toda vez.
Ou seja, não queria as comidas de Roma e muito menos estar em Roma. Não queria ter que escolher esse outro lugar (percebi um pouco tarde) quando a maior vontade não era apenas partir, mas construir uma vida com aquele que eu (ainda?) amo.
Em uma das conversas na capital italiana, tentando decidir se eu ia ou ficava, acabei conjugando para o passado o verbo sofrer, soffrire, como soffritto, no meio de uma mesa de bar — fiz as italianas rirem comigo. Soffritto, para eles, é o nosso refogado, basicamente um molho feito com cebola frita em azeite ou gordura, aromatizado com alho e outras ervas. Não demora nem cinco minutos, e é o primeiro e indispensável passo de muitas refeições. E que faz toda a diferença.
Comer só sabores conhecidos, rápidos e de digestão fácil, pareceu razoável diante de toda a dor que eu estava sentindo. Querer voltar para casa, me sentir minimamente confortável para repensar os próximos caminhos, mais uma vez sozinha, foi o que consegui fazer.
Saí na minha última noite por lá e decidi inovar — pedi uma pizza Capricciosa, uma mistureba com cogumelos, presunto cru, ovo, queijos… Foi péssimo, quase terrível. Mas tive a desculpa de ficar horas em uma mesa disputadíssima em Trastevere, rabiscando o texto que só consegui terminar aqui na ilha.
Foi absurdamente difícil admitir que todo o preparo interno para o movimento de saída não tinha sido suficiente para me fazer ficar. Que, talvez com certeza, eu tenha topado o que eu achava que seria uma nova fase porque tinha alguém me esperando no aeroporto. E que, na verdade, encarar mais uma mudança de cidade ou de país vai exigir de mim um outro momento: mais forte, menos apegada, mais livre.
E também com bem mais euros na conta.
“Embora a libido tenha enorme resistência em abandonar posições prazerosas já experimentadas, aos poucos a ausência do objeto impõe o doloroso desligamento, até que o ego se veja ‘novamente livre e desinibido’, pronto para novos investimentos. Pronto para voltar a viver.”
Enquanto isso, como meu feijão.
K., minha amiga de 10 anos, passou à tarde de domingo por aqui. Trouxe um pacote de miojo que a mãe colocou na bolsa, caso não tivesse comida na casa de Bianca (às vezes não tem). Ela primeiro experimentou minha panela e disse que estava “igualzinho minha mãe faz”. Ganhei o dia. Jogamos Uno depois de comer e ela chamou uma amiga para montar uma cabana no meu quarto. Pegou um dos livros na estante e as duas passaram horas de porta fechada, brincando de casinha de faz de conta.
Perguntei para K. se ela sabia onde sua mãe tinha ido: “foi no enterro do pai da dinda”. A história até agora é a de que ele caiu da ladeira e morreu, do nada. 56 anos, provavelmente um ataque do coração.
Então acho que só resta mesmo viver assim: tentando, falhando, e torcendo para que os processos de preparo e de luto não demorem tanto para passar.
A) Vou pra dentro:
Da época em que os Podcasts eram só em inglês e audiolivros não estavam na moda, deixo o link para a leitura do conto “Break it Down”, de Lydia Davis, que ainda não foi traduzido para o português. É um narrador tentando contar em números o quanto vale cada segundo para estarem juntos, e para dizer, no final:
"Você não pode medir isso, porque a dor vem depois e dura mais tempo. Então a pergunta realmente é: Por que essa dor não te faz dizer 'Eu não vou fazer isso de novo'? Quando a dor é tão forte que você tem que dizer isso. Mas você não diz."
B) Vou pra fora:
O livro e série da Netflix Sal, Gordura, Acidez e Calor, de Samin Nosrat: uma jornada pelos quatro elementos da boa cozinha, através de viagens gastronômicas que ensinam a cozinhar de forma mais intuitiva.
C) Fico com as palavras:
CAPRICHO - do Italiano capriccio, do Latim caper, cabra, do Grego kápparos, cabra. Isso porque dizem que uma cabra costuma ser vivaz e inquieta.
D) Fico por aqui:
A educação sentimental: se apaixonar, se desapaixonar - Thiago e a sua história de amor nos tempos de hoje
Nem todo desejo é passível de resolução - Bárbara e os desejos em suspensão
Faxinando o mapa - Tamires e seus 7 anos em Lisboa




Texto delicioso, maa ali no começo são seis cabeças ou seis dentes de alho??