Minha resistência do chuveiro quebrou e foi quase um mês para eu conseguir trocar. Calma, não é que eu passei esse mês aprendendo ou me preparando para uma tarefa doméstica aparentemente simples. Moro em uma ilha, certo? Aí tem a questão de como as coisas chegam aqui: de barco. E não tem correio. Mandamos para um endereço no continente e o próprio prestador desse serviço de caixa postal embarca o pedido (dentro de uma sacola plástica ou na própria caixa), com o seu nome escrito bem grande. Das primeiras vezes, me emocionava ao buscar os pacotes, apenas pelo reconhecimento de que eu tinha uma residência fixa e poderiam me achar.
Fora de temporada, esse evento de abastecimento acontece uma ou duas vezes por semana. Ficamos atentos ao horário da maré e aos áudios no grupo do WhatsApp, e metade da vila se encontra para descarregar suas encomendas.
Eu normalmente só recebo meus engradados de cerveja, indispensáveis à minha vida solitária pacata na vila. Às vezes recorro à Amazon para livros, shampoos especiais e até móveis e eletrodomésticos (fiz milagre decorando minha casa online!).
E aí aconteceu que apenas duas semanas depois que eu tinha voltado para cá, tive que pedir a tal resistência Lorenzetti (não é que eu estava inventando moda) pelo Mercado Livre. Não achei nem nas lojas do vilarejo mais populoso daqui, que fica a quinze minutos de quadriciclo ou um pouco mais de uma hora de caminhada pela praia. É lá que eu faço a compra do mês, encontro opções de congelados e me dou de presente mimos da cidade grande, tipo mostarda Dijon.
Alguns chamariam essa história de perrengue chique, mas foi um mês de banho gelado. Sim, mesmo aqui na Bahia estamos no inverno, e os dias não são tão quentes assim. Quando faz sol, a caixa d’água esquenta e fica até morninho, mas no resto do tempo a água do chuveiro é fria. Fiquei irritada — tinha que queimar bem nessa fase da minha vida, nesse bendito retorno, em que tudo parece sem sentido?
Não teve como eu não lembrar de Berlim, mais uma vez. Era 2019 e logo após meu primeiro Vipassana eu me propus a tomar banhos gelados para lidar melhor com o frio da cidade. Ali, de fato, a água que saía do encanamento era congelante, de formigar o corpo todo, da mesma forma que acontecia quando eu colocava o nariz para fora de casa em temperaturas abaixo de zero graus. Mas foi assim que fui me conectando cada vez mais com meu corpo e com as sensações, prazerosas ou não.
Já faz um tempo que eu reparei que Berlim sempre aparece nas minhas reflexões. E pensando bem, faz sentido, já que é o extremo oposto do estilo de vida que eu levo aqui na ilha.
Também foi lá que eu comecei a tirar da cabeça a ideia de que eu precisava ser interessante, ou pelo menos nos moldes que eu tinha imaginado. “Tell me a story I know you’re not boring”, da música dos Strokes, foi minha grande preocupação quando adolescente, e me perseguiu do outro lado do mundo, até eu entender que minha intensidade latina não teria como se ajustar as roupas pretas e a falta de sorrisos, itens necessários para entrar nas famosas baladas de eletrônico e pertencer à comunidade berlinense.
“O que chamo de uma vida interessante: uma vida em que você se autoriza a viver intensamente. Autoriza-se a viver com toda a intensidade que todos os momentos da nossa vida merecem.”
Contardo Calligaris - O sentido da Vida
Bom, acho que desde então eu devo ter evoluído um pouco, já que estou aqui escrevendo sobre a resistência de um chuveiro, acreditando que tem algo de interessante no que eu tenho a dizer.
Foi também no início desse mês gelado que eu ganhei uma leitura de mapa astral. Pelas minhas contas, o terceiro ou quarto que faço na vida. Minha relação com a astrologia foi sempre meio superficial, batendo o pé de que eu sou uma típica escorpiana (abraçando os mistérios, o erótico e blábláblá) e que meu ascendente em capricórnio era o responsável pelo meu lado racional, e que dava uma segurada em toda minha intensidade.
A querida Luisa começou a sessão perguntando se eu tinha certeza do meu horário de nascimento, e me explicou que quatro minutos mudavam tudo. Só de pensar que eu nasci de cesárea, no horário que minha mãe marcou na agenda, e que isso influenciou todo o meu jeitinho de ser — vai dizer que não tem algo de mágico nisso?
Seria demais contar aqui as duas horas de conversa que tivemos, entre choros e risadas, mas o que mais mexeu comigo foi tirar um pouco o peso da minha “vida concreta” (e dos meus traumas) de tudo que sou hoje. Ouvir que minha porosidade com o mundo vem da posição do meu capricórnio (tadinho!) e que minha lua em carrega a dificuldade que eu tenho em achar equilíbrio entre vínculo e autenticidade foi um grande Ufa. E que sim, a fase que eu estou agora é pela dor de retirada de espinhos profundos, mas que vai passar e vou sair dessa uma pessoa melhor. Disso eu desconfiei um pouquinho…
“Todas as psicoterapias só têm esta ambição: buscar entender como, na vida concreta do paciente, é possível descobrir alguma coisa que a valorize; não fora da vida concreta do paciente, mas nela mesma. É por isso que a terapia acaba sendo um trabalho quase estético, um trabalho de recriação narrativa de uma vida, que dá atenção a uma vida de tal forma que ela se valoriza.”
Já são mais de oito anos de análise. E não me leve a mal, eu amo fazer análise. Foi uma das ferramentas que me possibilitou entender os porquês que me foram negados quando criança. Todos os “por que não e basta” que eu ouvia, e que criaram em mim uma obsessão profunda em saber os motivos dos meus padrões e escolhas. E também dos outros.
Mas tem uma hora que cansa cavar. Ir tão fundo para ter que compreender (e aceitar) que simplesmente as coisas são o que são. Ou foram o que foram.
Na semana seguinte do mapa astral, meu grupo do WhatsApp das amigas do colégio aleatoriamente reviveu, e decidimos mandar podcasts semanais com atualizações sobre a vida. Pânico.
E aí? Que que eu teria para falar? Que tanto está acontecendo no inverno paradisíaco de uma desempregada com coração partido que vive em uma ilha na Bahia? Tinha uma semana para me preparar.
Destino ou não, voltei a ouvir os podcasts do Tim Ferriss, que tem uma jornada super interessante de mudança de foco sobre produtividade (ele escreveu The 4-Hour Workweek em 2007) para uma abordagem mais espiritual. Ele ainda faz muitas entrevistas sobre performance e mercado, mas o cara é realmente muito bom em arrancar das pessoas o melhor que elas tem a oferecer (além de financiar pesquisas com psicodélicos nos EUA).
Bem despretensiosa, dei play no episódio com a Elizabeth Gilbert. Escritora do livro best-seller Comer, Rezar e Amar, e hoje dona de uma das newsletters mais famosas lá fora, “Letters From Love with Elizabeth Gilbert”, em que os participantes convidados escrevem cartas de amor a si mesmos.
Coincidentemente, lá estava ela, falando sobre propósito, uma das palavras que eu comentei que eu não gostava, na minha sessão de mapa astral.
And then, it’s not enough to become the best of that thing, you have to monetize it. And it’s not enough to monetize it, you also have to create opportunities for others and make sure that they’re also being served by this purpose.
And if all of this sounds exhausting, you are not off the hook even when you die because you must leave a legacy. And you must change the world.
So no pressure, but that’s it. That’s it. You must change the world. And it’s like, I think it’s very male. I think it’s very capitalistic. It’s very self-centered. It’s very like, you only must do this thing that only you can do, and the world must be altered, and like they must know you were here. You must leave your mark on the world. And I think the world at this point is, like, “I wish maybe that you stopped leaving marks on me.” Maybe we could use a little less of that?
[...]
And what would be the opposite of a purpose-driven life? Would be, I think, a life of presence. It’s also focused entirely in the future constantly. And I don’t think there’s any way that you can live a relaxed or really truly rich or meaningful life if you’re constantly thinking about your fucking legacy.1
Sem querer, me vi pronta para mandar meu áudio de cinco minutos no grupo. Enquanto regava as plantas do meu terreno, contei, com alguma alegria, que tenho me dedicado à minha rotina, aos prazeres diários, à minha criação. Que entre uma ideia e outra, vou correr na praia, medito, leio, faço ioga, e ouço com atenção a disposição errática que toda nova manhã me oferece. Que quando a noite chega, estou sempre exausta, e um pouco triste. Tomo uma cerveja e vou dormir escutando a série Em Terapia, como se a neurose dos outros fosse um acalento para minhas.
Para que estou fazendo tudo isso? Por enquanto não sei, porque não tem dinheiro envolvido, nem perspectiva de publicação ou novos editais.
“Pensar no juízo estético como uma espécie de critério moral é geralmente considerado uma atitude “vergonhosamente” hedonista – tipo “oh, o cara gosta de sensações agradáveis”. Hedonista se tornou por si só uma crítica moral. Como se fosse possível a um humano não preferir o prazer ao desprazer. Como se preferir o prazer fosse uma falha moral. É uma curiosa e pesada herança cristã na nossa cultura: o sofrimento e a privação ganham pontos aos olhos de Deus e presumivelmente facilitam nosso acesso ao reino dos céus. O prazer, ao contrário, seria sem mérito, a escolha pelo mais fácil. A realidade é exatamente o contrário disso. O sofrimento e o desprazer (sobretudo auto infligidos) são quase sempre escolhas bovinas (que os bois me perdoem), inertes e resignadamente ignorantes. Enquanto o hedonismo, a procura do prazer, pede um esforço contínuo de atenção ao mundo e um aprendizado sem fim.”
Um dos mantras do budismo é o tal desapego. “No reaction to pain, no reaction to suffering, no reaction to pleasant sensations”, a voz repete todas as manhãs no meu aplicativo de meditação. É o ensinamento que eu nunca soube bem como resolver internamente, e muito menos na vida prática, desde que fiz meu primeiro retiro.
Rir, chorar, ficar com raiva, sentir e me emocionar com a “poesia da vida”, como eu defini para minhas amigas, é o que tem dado sentido aos meus dias. Deixando que ela inspire e mova tudo o que eu consigo tocar, mesmo que só com meus pensamentos. Por enquanto.
A solidão que descobri em Berlim fez parte dessa preparação, não tenho dúvidas. Além de ter sido o grande sonho da minha juventude, quando estar longe ainda significava ser livre. Hoje, se precisasse escolher um dos meus grandes desejos, diria que é ter uma casa, dessas de verdade, com paredes, portas e janelas, e um quintal bem grande, com vista para o mar. É o único que parece depender mais de mim do que dos outros.
A resistência chegou no começo da semana passada e levei mais alguns dias para trocar. Deixei para sexta-feira, o primeiro dia do ritual que adotei aqui na ilha: tomar três banhos de maré vazante três sextas-feiras seguidas (para deixar ir tudo que tem que ir) e na quarta, e última, um banho de maré de enchente, para que, com espaço aberto, possa chegar tudo que tem que vir.
Estava um pouco nublado, a maré virou às 15:30 e eu tinha trocado (com algum esforço, não vou mentir) a resistência pela manhã. Imaginei que sairia correndo do mar direto para o chuveiro, o banheiro limpo, tudo cheiroso e perfeito para o prazer de um banho quente.
Mas não. Saí da água quase gelada e senti o vento frio no meu corpo, os pelos arrepiados, o cabelo escorrendo e ensopando a canga estampada de olhos gregos, que minha mãe me deu de presente. Fechei os olhos e meditei, o que, para mim, significa simplesmente observar cada pedacinho do meu corpo, “bit by bit”, sensação por sensação.
E ali, por alguns minutos, na bagunça entre o concreto e o transcendental, entre a matéria e a superstição, senti que estava tudo bem.
“Fruir da vida só é possível para quem não se distrai; para quem, ao contrário, mantém um esforço constante de atenção à vida. O esforço, obviamente, não garante que a vida nos reserve só coisas boas, mas a primeira coisa boa é a própria atenção às coisas da vida.”
A) Vou pra dentro:
Outro Podcast do Tim Ferriss, para continuar na onda. Esse sobre ser-consciência, meditação, gurus, e algumas ferramentas contra a ansiedade.
B) Vou pra fora:
Batida só, novo livro da Giovana Madalosso, que fala sobre a fé, uma doença do coração, o encontro de uma adulta com uma criança, e o tanto que a vida (e os outros!) podem ensinar, mesmo nos momentos mais desesperadores.
C) Fico com as palavras:
MOTIVO: do Latim motivus, o que causa movimento, que leva coisas a se moverem, de motio, movimento.
D) Fico por aqui:
Motivos - a poesia da vida da Natércia em sua lista de prazeres cotidianos que justificam a existência
Memória de peixe - reflexões da Julia sobre a relação entre corpo, escuta, afeto e uma peça de teatro
O que as pessoas interessantes fazem? - Christian elabora que as pessoas interessantes são aquelas que se mostram interessadas nos outros e no mundo ao redor.
"E então, não basta se tornar o melhor naquela coisa, você tem que monetizá-la. E não basta monetizá-la, você também tem que criar oportunidades para outros e garantir que eles também estejam sendo servidos por esse propósito. E se tudo isso parece exaustivo, você não está livre nem quando morrer, porque você deve deixar um legado. E você deve mudar o mundo.
Então sem pressão, mas é isso. É isso mesmo. Você deve mudar o mundo. E é como se eu acho que é muito masculino. Eu acho que é muito capitalista. É muito centrado em si mesmo. É muito tipo, você só deve fazer essa coisa que só você pode fazer, e o mundo deve ser alterado, e tipo eles devem saber que você esteve aqui. Você deve deixar sua marca no mundo. E eu acho que o mundo neste momento está tipo, 'Eu queria que talvez vocês parassem de deixar marcas em mim.' Talvez pudéssemos usar um pouco menos disso?
[...]
E qual seria o oposto de uma vida orientada por propósito? Seria, eu acho, uma vida de presença. Está também focada inteiramente no futuro constantemente. E eu não acho que há qualquer maneira de você viver uma vida relaxada ou realmente verdadeiramente rica ou significativa se você está constantemente pensando na sua porra do legado."